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embarcAção

Performance

Embarcar é o sentimento da partida, sempre que começamos algo novo embarcarmos para o desconhecido.

Embarcar uma ação com vivências do coletivo numa imagem de barco, é viver esse tempo que parece parado entre outros tempos.

A imagem do nosso barco precário se misturava com a precariedade de um outro espaço entre nossas vidas,  a universidade, onde também navegamos no desconhecido, e que por mais que usássemos nossos galhos de bambu para remar éramos levados pela a maré.

A figura de uma embarcação, seja qual for a dimensão do seu formato, ativa uma memória de todos os tempos. Pensando nela, recordo que o barco é o primeiro meio de transporte que efetivamente permitiu o ser humano cruzar mundo. Antes do barco, que nem sei quando de tanto que existe, cada continente, cada pedaço de terra cercado por um tanto de água, resumia o mundo de quem ali habitava. Os povos fechados em si, sabendo do resto do mundo apenas pelo imaginário. As embarcações é que fizeram de nós seres que atravessam fronteiras, permitiu o encontro entre os “uns” e os “outros”, pelo bem ou pelo mal, misturando-os. Não é à toa que não voamos, transitamos ou qualquer outra coisa pela internet: navegamos.

Esse transportar-se pela água carrega consigo, também, mais do que atravessar fronteiras que, por mais invisíveis que sejam, são concebidas em nossa geografia. Simbolicamente o barco era (ou é), em diferentes culturas, o meio para a transição entre outros mundos: da vida para a morte, do corpo para a alma. Navegar é também transmutar-se.

O barco ---> A experiência-barco de feitura coletiva de um organismo vivo e anamórfico. 

 

A concepção e amadurecimento da ideia.

 

A caminho de descobrir e conciliar as imaginações formais, conceituais e empíricas do barco em meio ao (a princípio) caos do indeterminado coletivo.

 

A desorientação consensual fértil à eclosão de idéias e então a produção (e produto) de uma proposição simples:

 

Não prever o imprevisível e executar um trabalho de organismo único de autogestão desplanejada.

como foi.

 

O barco de cada um, e o barco de todos. aberto para o jogo da troca e, para mim, a brincadeira imaginativa de faz-de-conta

inconstante, instável,

tira bota levanta abaixa move e move. 

 

E não tinha o que dar errado.

 

O vento: o vento que a gente queria botar numa caixinha.

Mas ai seria só ar.

 

E até que ficou bonito no final.

E no meio.

E antes.

Vendo agora

Só da vontade de velejar (junto)

Seja lá o que isso significa.

 

A embarcação diligenciou, antes de tudo, negociação. Acordo, ajuste, conciliação, conexão, conversação, entendimento… há muitos sinônimos, e todos poderiam substituir o termo “negociação”. Agora me pergunto por qual motivo decidi empregá-lo, provavelmente que não tenha sido nenhum em especial, ou alguma associação sutil feita quase automaticamente quando pensa-se em barco, um vislumbre que remetesse a sua história, alguma ideia incrustrada no inconsciente coletivo. Por esse critério, há outros daqueles sinônimos que dividem essa carga. Aliança, por exemplo., Foi uma grande embarcação que teria representado o pacto de Deus com um homem, Noé.  “Mas com você estabelecerei a minha aliança, e você entrará na arca com seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos.” Gênesis 6, 18. Entretanto, os negócios  parecem acompanhar de muito mais perto o percurso das embarcações pela história, quiçá também em direção a uma nova divindade. Não penso ser possível apontar se a ambição em captar e trocar recursos foi mais causa ou consequência de grupos de sujeitos tomarem a decisão atravessar oceanos e rios, determinar-se a sair de lugar para outro em caminhos desconhecidos e adversos, abrir mão da terra. O que se sabe é que a fizeram, e sempre com algo a reboque. Temperos, grãos, minerais… outras pessoas. Hoje, mesmo competindo com muitos meios de transportes, ainda é a responsável por grande parte da circulação de mercadorias no mundo, mais do que pessoas em si. Também evoluíram em tecnologia, são quase autômatas - como durante o dilúvio, as pessoas que as guiam transferem sua fé em algo no céus, intrincados sistemas de satélites ao redor do planeta que o observam e medem. De todo modo, as embarcações-negócios representam transformações radicais sofridas por muitos povos, a base da força e subjugação por quem descia delas.. Muitos nem tinham outra coisa que espelhavam algo próximo daquilo em suas culturas. Elas carregam o peso, portanto, de inúmeros apocalypses. Perda de casa, liberdade, do próprio senso de existência. Não à toa, de um modo que me faz pensar que essa coisa navega fora do tempo, foi designada durante muito tempo para isolar os tidos como loucos e rejeitados do resto da sociedade. Data da idade média a existência de navios que passavam de cidade em cidade, apanhando seus loucos escorraçados. “Primeiro, a partir do estranhamento do diferente, que é aqui  justamente aquilo que distorcemos, julgamos como secundário ou inferior; criaremos as circunstâncias que desequilibram e geram sofrimento ao outro. Agora, passamos denovo e recolhemos todo o fruto disso.” Parece refletir uma entidade-embarcação, com pouca  preocupação em situar-se no tempo.
 

Todavia, o que se realizou com o trabalho embarcAÇÃO, talvez não como uma opção consciente e prévia, mas como desdobramento real de um desejo, foi a ressignificação do termo negociação em alguns sentidos. Negociamos e renegociamos com os materiais, partindo da inclinação ao uso de materiais reaproveitados e que de preferência por ser encontrado no próprio campus da universidade. Entendemos que as próprias histórias desses pedaços diversificados de madeiras, chapas, canos, cones, redes etc. era já era impregnado de memórias, carregava diálogos e trocas anteriores - com antigas funções, processos a que foram subjugados do momento em que foram criados até depois de serem abandonados, outros pedaços agora ausentes com o quais se completavam e sabe se lá onde estariam agora, com a própria localidade da Ilha do Fundão. Trazer essa reciclagem de informação para a embarcAÇÃO também parecia a circunscrever dentro de um contexto com mais significados e simbologias. E a negociação não parou para aí, continuando durante a ação de fato, onde conjugamos diferentes fragmentos, víamos despontar novas formas e as deformavamos novamente em seguida, para repetir tudo outra vez. Em muitos momentos, o resultado realmente parecia muito similar à silhueta de um barco, e cada pessoa do coletivo tomava isso de uma forma individualmente distinta. Enquanto uns tentavam se afastar da contiguidade literal com a embarcação, outros nela encontravam aconchego. 

 

O espaço e o tempo também tomaram parte da negociação. A escolha do lugar que serviria de chão e fundamento para a construção era crucial; sabíamos que dela dependia boa parcela do alcance da ação - ocorreu durante um evento no qual outros trabalhos e ações eram apresentados, e nosso se deu em um polo mais distanciado  -  e pesamos esse fato em uma balança, com outros contrapontos de ordem mais concreta. Pensamos a tridimensionalidade e a materialidade do projeto, o fazer escultórico, a trama e a cena. O tempo também se revelou um dado importante, com o qual seria preciso entrar em entendimento. O clima instável aludiu de novo a Arca de Noé, nos fazendo refletir com qual espécie de força negociávamos, que tipo de pacto o ato de erguer ali e agora aquela embarcação selava. 


Contudo, todos esses aspectos pareciam derivar da maior negociação ali materializada, que era sim um objetivo metodológico proposto, mas que em certo ponto apresentou-se com uma propensão maior do que esperava-se de reforçar o principal objeto do curso Arte: Ecologias. O trabalho e o senso de coletividade que já existia e era impulsionado mesmo antes de existir trabalho. Falar sobre esse muito denso e de certo muito maior que o próprio curso, que a própria embarcAÇÃO, o ecossistema em si. A construção passou por vários estágios antes de se dar de fato, e em cada uma dessas fases o potencial de se multiplicar para cada pessoa era singular. A pré-concepção, a discussão, as escolhas, as reuniões, o modelar e remodelar do barco, a coreografia natural que surgiu da ação, sabemos que empregamos uma energia que foi além do pensar em um sentido para arte além do mercadológico, mas que voltou seu movimento para dentro, na geração fértil de subjetividades e novos modos de se relacionar com o diferente.

Texto à várias mãos: "embarcAção" de Miguel Reis, Paula Scamparini, Joana Tostes e Matheus Felipe Xavier

produzido para o projeto final da disciplina Arte: Ecologias 2019.1

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